A Menina de Pólvora

Nota: Este texto não é apenas um poema mas também um filme que se encontra disponível em http://www.youtube.com/watch?v=0j1bZhzL05Y
É dedicado a todas as vítimas de guerra que o mundo conheceu particularmente as crianças.






Na imensidão do céu imensamente cinzento
Desbravas memórias que te consumaram o espírito de dor
Aí vais tu com o teu andar de menina
Saltitando por entre os ramos quebradiços
Olhas para o céu que te pisca o olho
E continuas a tua jornada de quase pureza
Tal como se o teu mundo fosse um jasmim primaveril
Que embeleza as mãos perversas que o arrancam do útero da natureza
Como eu gostaria de ser como tu…

Ter a grandeza do teu espírito de menina de pólvora
E assim padecer…
Padecer na mais predilecta raiz da terra que nos dá o ser e, ao mesmo tempo, nos recolhe o corpo inanimado…
Tu, que viste, ouviste e sentiste
Aquilo que eu,
pobre ser fútil com sonhos fúteis de uma felicidade fútil,
não vi, não ouvi e não senti
O sangue nas tuas mãos e as tuas mãos com sangue…
daquele vivo, daquele muito vermelho…
daquele que é vermelho vivo apesar de jorrar dum cadáver…
Um cadáver que era a tua mãe
A tua mãe! A tua mãezinha que te contava histórias de principados distantes onde os meninos, como tu e os teus irmãos, não precisavam de se esconder debaixo da cama sempre que ouviam passos próximos
a ecoar nas vossas mentes repletas de fantasmas de guerra.
A mãezinha falava-te de monstros urbanos com eu, e os meus semelhantes, que por não terem verdadeira dor nos seus corações semeiam cólera nas suas próprias almas com insatisfações mundanas...
e epopeias escritas por alguém descrente das suas crenças.

E agora tocas-me…
Tocas-me assim e enches-me de lágrimas…
tocas-me com os teus gritos suplicantes,
com as tuas lágrimas de menina que não entende o porquê
dum soldado a disparar a morte na cabeça do teus pais.
Choras lágrimas de uma humanidade perdida para sempre no genocídio dos seus próprios rebentos…
Choras o verdadeiro fim que já aconteceu antes de tu e eu nascermos
Choras os fins que acontecem todos os dias desde sempre e para sempre…
Ontem, hoje e amanhã

Estavas lá nessa casa em ruínas rodeada de centeio ensanguentado e lágrimas de dor da tua mãe esfomeada que chorava o teu pai refastelado no chão da morte onde todo o tempo é mera luta entre o corpo e os abutres do deserto sedentos da luxúria de escarafunchar por entre as feridas das passivas balas que viajam com o destino marcado e te fazem pensar e recordar e reviver e odiar esse dia mortífero e inesquecível onde…


E agora que te vejo, menina de pólvora sei que com a minha passividade…
a passividade que o mundo em que vivo me administrou,
me amarás sem eu merecer o teu amor pois serei refúgio para ti…
serei paz que não te denuncia mas que também não te protege…
serei a sombra que te camufla do mundo das trevas…
serei o sol que te aquece os pés descalços quando te apetecer correr sobre ramos quebradiços …
serei os dias e as noites e até as estrelas a quem rezarás sempre antes de adormecer e embarcares no teu mundo de sonhos…

E como sonhavas!…
sonhavas com uma vida que eu e os meus semelhantes tantas vezes odiamos…
sonhavas possuir aquilo que tantas vezes eu reneguei
E sonhavas que tinhas mãe e que tinhas pai e que tinhas alma
Sonhavas com esse principado distante onde os meninos, como tu e os teus irmãos, não precisavam de se esconder debaixo da cama sempre que ouvissem passos próximos
a ecoar nas vossas mentes repletas de fantasmas de guerra.
Sonhavas que te encontravas numa terra em que não havia rugidos de metralhadoras e granadas e tanques e explosões…
Tu sorrias e dizias não acreditar nisso pois isso não tinha cabimento no teu mundo de sonhos
e metralhadoras
e amor
e granadas
e fome
e tanques
e rostos gritantes gritando, chorando, implorando pelo tiro final para poderem descansar em paz – ainda que mortos.
Sonhavas com a mãezinha que te ajeitava os cobertores quando fingias estar a dormir.

Mas eram sonhos!

...e os sonhos têm a terrível malícia de nos deixarem tristes quando acordamos…

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