Um Rosto Na Multidão


Agora que caminho por entre estes corpos despojados de alma, nesta cidade despojada de vida, procuro um mundo despojado de morte. Mas não consigo. Tudo é morte desde o primeiro segundo em que se perde a vida e tu… tu eras a minha vida! Quando te ouvia a sorrir, a minha alma sorria também porque o amor é apenas um espelho onde reflectimos no outro aquilo que nos habita interiormente. Lembro-me de me levares a passear no jardim com o teu vestido estival cheio de flores. Lembro-me de te acordar a meio da noite com o meu choro e de tu me acalmares com palmadinhas ternas nas costas. Lembro-me de me contares histórias de amor que lias em romances requisitados na biblioteca. Como gostavas de amor e como amavas essa tua forma amorosa de me amar que dava vida à minha vida e me fazia viver para ti que eras a minha vida.
Mas… como não há vida sem morte, também a nossa vida seria abalada por essa mesma coisa mortífera que não é mais que a própria vida. Era o dia dos meus anos. Exactamente o dia em que fui mais cedo para casa para te fazer uma surpresa. Porém o surpreendido fui eu, quando entreabri a porta cuja maçaneta estava manchada por um espesso líquido vermelho. Percebi logo que, mais uma vez, ele tinha ido visitar-te mas que, desta vez, a sua passagem não tinha sido tão vã como as anteriores. As gotículas de humidade provenientes da tua respiração ofegante tinham embaciado o espelho poeirento. Os lençóis amarelados estavam ainda mais amarelados devido aos suores que neles flutuavam. As tuas roupas estavam espalhadas pelo chão. A poça do espesso líquido vermelho chegava até à entrada da porta e molhava os teus sapatos preferidos – aqueles que tinhas comprado num dia em que tínhamos ido à grande cidade.
O cheiro no quarto era nefasto e a cena hedionda. Estavas lá… mãe.
Estavas lá deitada na imundice, na poça de esterco, sangue e esperma onde não merecias estar. Fechei a porta e corri.
Corri sem parar e, sem parar, corri. Escondi-me limpando as lágrimas de mágoa que me inundavam a cara e a própria vida…
Esta… esta é a história da minha vida. Fez de mim aquilo que sou hoje.
Quem eu sou? Não interessa quem sou ou de onde vim. Não interessa qualquer que seja a coisa sobre mim. Não interessa sequer que eu tenha o interesse suficiente para ser interessante.
Sou mais uma história demoníaca, sou mais uma cara sem nome, sou mais um corpo sem alma… Sou, e limito-me a ser, mais um rosto na multidão!...

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