Um Espelho Para Quatro Actos


Prólogo:
A história da minha vida?
Uma epopeia mundana daquilo que é amar alguém...
Nada de original
Nada que qualquer outra pessoa não o tenha vivido também...
Hordas de paixão intensa e amores primaveris e floreados...
E dor!...
Dor como qualquer romance que se preze tem!
Dor daquela que doi mesmo quando não pensamos nela!
Dor física...
Dor espiritual...
Dor que ainda doi ao fim de tanto tempo...
Dor que faz parte da minha história...
que me enche agora......
de vazio
Que tenho para te contar?
Que encontrei o reflexo para a vida que acabou por desaparecer sem deixar rasto?
Que te respirei sempre em todas as estações da minha vida?
(Embora de formas bem diferentes?)
Sim...
Acho que é isso...
É esta a minha história...
A história do encontro do verdadeiro reflexo para lá do reflexo fácil que o espelho nos reflecte
A história de um teatro onde os protagonistas protagonizam a sua própria desgraça...
O teatro da minha vida?
Bem.. divido-o em quatro actos:
Histeria, Expulsão, Sopro e Envelhecimento!


Acto I : Histeria
No espelho envernizado do nosso quarto vejo reflectidos os primeiros raios de luz que entram pelas frestas da janela. Neste dia que se adivinha solarengo, reparo que ainda não acordaste. Ainda estás a dormir com aquela cara de criança feliz que costumas ter quando sonhas comigo. Sim, sei perfeitamente que é comigo que sonhas pois também tu és a única personagem que aparece sempre nos meus sonhos nocturnos e diurnos. Tal como a estação do ano em que estamos, sinto um amor puro e primaveril dentro do meu coração. Qual árvore a florir para sempre, o meu coração parece já não ter espaço para te amar tanto mas, apesar disso, sinto que em cada segundo que passa amo-te mais um bocadinho!Olho para o espelho e observo-me atentamente pela primeira vez na minha vida. Vejo um rosto feliz. Feliz por ter alguém como tu que me dá vida e me faz viver para ti que és a minha vida plena de amor e felicidade.Ainda estou nua. Não sou particularmente bonita mas tu, com toda a pureza do teu amor verdadeiro, tornas-me bonita pois sei que me basta reflectir aquilo que tu és para ser a mais bonita do mundo! Ainda estou abalada pela intensidade da noite que passámos juntos. És um sopro de histeria que me habita internamente e me faz expulsar para sempre o envelhecimento do meu corpo. Porque me fazes jovem. Porque quando fazemos amor viajas com a tua língua pela minha pele como se de um templo se tratasse e quisesses absorver-me num abraço eterno de paixão intensa. Seguras-me nos braços e, por momentos, sinto que nem o meu corpo nem o meu espírito estão neste mundo pois são levados pelo teu corpo e pela tua alma para esse mesmo lugar onde estão os corpos e almas que se conseguiram fundir num só, dando origem a uma criatura que é sexo e amor pois o amor sem sexo é mera amizade perseverante e o sexo sem amor é mero desejo carnal, necessidade emotiva, gula de luxúria gratuita! Não só tocas o meu corpo como o fazes com a minha alma. Sinto a tua alma a penetrar a minha e a transpor-me para esse limiar da existência feliz onde, devido a sentirmos de forma tão arrebatadora, acabamos por perder os sentidos (exaustos de tanto sentir!). Somos um só e um só tem, indubitavelmente, amor por si próprio. Sinto uma alma que grita bem alto das profundezas do meu ser o teu nome! Amo tudo o que tu és de forma obsessiva!... Chega mesmo a ser egoísmo porque se somos um só, amar-te é a mesmíssima coisa que me amar… que nos amar! É amor do mais puro que habita o mundo perfeito que criámos conjuntamente. É amor histérico por querer bradar aos céus a histeria que é amar cada detalhe dessa tua pessoa cheia de detalhes que, por serem tão perfeitos, não podem ser humanos mas, no entanto, fazem de ti a pessoa mais humana de toda a humanidade inumana!Já nem sei se és sanidade ou loucura na minha vida! Só sei que és tu que, sem dar por isso, me fazes sã e louca por ti!... Sei que são antíteses mas isso não me importa! Importar-me seria desperdiçar o tempo que temos juntos. Tu dizes, e eu sinto-o, que nos vamos amar para sempre… e, se sou imensamente feliz contigo no meu presente, sei que só contigo poderei viver um futuro igualmente feliz!...
Meu amor!... Minha vida!... Meu reflexo do meu próprio reflexo!


Acto II : Expulsão
No espelho baço do (agora) meu quarto vejo-te a fechar a porta contra a minha vontade. Oiço-os dizer que na vida há sempre portas a abrir e outras a fechar mas não quero saber de frases feitas. Se és tu a fechar a única porta que eu desejava aberta, então mais vale nem sequer abrir nenhuma porta. Não fechas só a porta deste quarto malogrado. Fechas a porta da nossa vida conjunta. Fechas a porta dos nossos sonhos, do nosso futuro, do nosso mundo. Sim, é verdade. Fui eu que te mandei ir embora do quarto mas foste tu quem me renegou… quem desistiu de mim… quem de mim não quis saber!... Como foste capaz de abdicar de tudo o que construímos? Se a tua alma se estava a perder porque não me pediste para a procurar? Porque não procuraste consolo no regaço do meu espírito?Falavas-me de como o nosso romance era belo ao ponto de não necessitar de ser romanceado para ser o romance mais romântico de todos os romances da Terra. Dizias-me palavras eternas, desejos latentes, quimeras por possuir, madrigais majestosos… Contavas-me trovas dum amor imperfeitamente perfeito – e, por isso, perfeito – mas foste tu quem abriu asas para um voo solitário que nos tornou ambos solitários. Tantas estrofes que me escreveste dizendo que me amavas, tantas vezes que, enquanto fazíamos amor, me confidenciavas sobre a forma de um suspiro voluptuoso que me amavas… Que amor é esse que magoa? Que amor é esse que provoca lágrimas de angústia? Que amor é esse que vive para expulsar a semente do seu sémen no útero da fecundidade, para depois nos abandonar ao insensato sopro da vida que nos envelhece na histeria da cegueira muda?... Amor? Que exuberância! Chama-lhe tudo menos amor! O amor não rouba, o amor oferece, o amor partilha! E, vejo agora, que não paraste de me roubar. Roubaste-me uma felicidade que eu sempre te quis dar gratuitamente. Roubaste-me o futuro, o presente e até o próprio passado! Roubaste-me a alma e roubaste-me o corpo! Roubaste-me até o próprio ar que respiro pois agora quase sufoco sempre que respiro! Roubaste-me a virgindade mas, nem por sombras, me roubaste a pureza, pois serei sempre pura de sentimentos e isso sim, é a verdadeira pureza! Roubaste-me este e o outro mundo! Roubaste-me desde o primeiro minuto em que te conheci! Roubaste-me a vida! Roubaste-me tudo! Roubaste-me!!!... E quem rouba é ladrão! Não quero amar um ladrão…nunca mais! Só te quero odiar! Odiar o amor que tenho por ti! Odiar-te com todo o calor que te amei!... E odeio-te, odeio-te, odeio-te! Odeio-te tal como odeio todos os ódios que o teu ódio gerou em mim! E odeio-te, odeio-te, odeio-te! Odeio-te tal como odeio esta tarde de verão de Agosto que me inunda a testa não de suor mas de ódio do mais odiento possível! E odeio-te, odeio-te, odeio-te! Odeio-te tal como odeio este calor seco que entorpece a atmosfera e me aquece o fervor de morrer de calor e viver de ardor! E odeio-te, odeio-te, odeio-te! Odeio-te de tal forma que nem podes imaginar! E odeio-te, odeio-te, odeio-te! Odeio ter-te ódio mas odeio ainda mais não te conseguir odiar! Odeio-te hoje e odiar-te-ei para sempre!
Sim, odeio-te… meu amor!... Minha vida!... Meu reflexo do meu próprio reflexo!


Acto III : Sopro
No espelho relativamente iluminado pela vela que seguro na mão direita observo agora a minha face translúcida. O turbilhão de sentimentos radicais e exacerbados que habitou em mim por ti, começa finalmente a sossegar. Já não te odeio, já não desejo que sofras tudo aquilo que eu sofri! Sou mulher e, como tal, sou forte! E consegui encontrar dentro de mim uma força que não me deixou enfraquecer mas, todavia, sinto-me tão fraca! Calma e serena mas fraca! Soube destruir o ódio que construí por ti e soube restaurar o amor que tu conduziste à erosão…e… a verdade dentro de mim não me deixa mentir: amo-te! Amo-te por tudo! Amo-te como sempre e para sempre! Amo-te e volto a repetir: Amo-te! Suspiro-o da mesma forma como fazia nas vezes em que esperava que viesses para casa. Mesmo que te atrasasses, tu vinhas sempre para casa… até àquele dia em que tudo mudou. Agora sei que não voltarás mas não é por isso que vou deixar de te amar! Amo tanto tudo o que me deste! Por maior que seja a mágoa que me causaste, por teres fechado a porta para sempre, não poderei nunca esquecer o mundo que me deste! Passei anos a esquecer de me lembrar! Mas a verdade é que não posso apagar os momentos que me deste, a vida que me proporcionaste! Pois a vida não se escreve para depois se apagar com uma borracha… Continuas lá… No meu mundo perfeito! Continuas lá com esses caracóis que Deus pintou de castanho! Continuas lá na mais terna redenção que é dar vida à minha vida moribunda! Continuas belo e imperfeitamente perfeito e tenho a certeza que continuarás sempre até ao fim dos meus dias! A tua beleza persiste em mim mas, ainda dessa forma, não poderei também esquecer-me de lembrar aquele dia em que desapareceste! Aquele dia que foi o último dos meus dias! Não me esquecerei de lembrar também, os oceanos que chorei, os desertos onde deambulei e o vento que superei! É certo que o vento é instável pois ora sopra sopros fortes, ora ameniza as coisas soprando brisas amenas. Mas basta-me debruçar-me sobre o miradouro da minha vida para perceber que o vento, por mais intempestivo ou matreiro que seja, não consegue levar nem uma só memória do memorial da minha vida! Mesmo que, qual vento de Outono, consiga arrastar algumas folhas pelo pavimento da minha sensibilidade, decerto não as irá deglutir na esperança inútil de alterar o passado vergonhoso. As memórias persistem a tudo! Só mesmo o tempo poderá apagar algumas pois só o tempo ousa tamanha ousadia! Mas por mais tempo que passe, sei que estarás dentro de mim pois és o meu passado, o meu presente e, tenho a certeza, o meu futuro! Vejo agora que foste a lição da minha vida! Foste o lírio plantado no jardim oculto da minha alma suplantada de erros errantes! Á medida que vamos envelhecendo, a nossa vida vai-se tornando em algo que não é mais que um mero sopro frágil que já não tem o fulgor e a histeria da juventude pois já não temos energia para expulsar tudo aquilo que nos habita interiormente.A vida é simples mas todos nós achamos que a devemos simplificar tornando-a mais complexa. Agora?… contradições, paradoxos e incongruências embatem no meu coração duplamente apaixonado e magoado! A vela que seguro na mão direita continua acesa mas será que resistirá à bravura do vento forte de Outono? O tempo o dirá…
Meu amor!... Minha vida!... Meu reflexo do meu próprio reflexo!


Acto IV: Envelhecimento
No espelho quebrado do meu quarto escurecido com o passar dos anos, observo a palidez da minha face. As rugas são muitas e os lábios estão roxos. O meu pescoço é agora uma cascata de peles demasiado enrugadas para passarem despercebidas. Os cabelos brancos e fragilizados pelo tempo estão presos à última coisa que me deste – aquele pequeno gancho prateado em forma de libélula.Esse espelho cruel reflecte agora um olhar cansado que finalmente vê com olhos de ver – ainda que húmidos por verterem tantas lágrimas – tudo aquilo que vivi… Todas as estações da minha vida, todas as paragens, todas as dúvidas, todas as certezas duvidosas, todas as caras, todas as sombras, todas as palavras marcantes, todos os minutos sorvidos rapidamente e todas as décadas longas e penosas.Tento esboçar um sorriso puro e feliz. Daqueles que fazemos quando somos crianças apaixonadas pelo nosso pequeno mundo que não é mais que uma caixa de brinquedos num quarto deserto de impureza e malícia. Mas não consigo! Longe vão os tempos em que a felicidade presenciava todos os momentos da minha vida! Longe vão os tempos em que sorria, sem por isso dar conta, pois tinha esse pequeno bem simples, essa musa de poetas baratos mas dignos, essas quatro letras que formam a erudita Roma… Sim, era amor! Do mais puro! Daqueles que dão vida à própria vida… Tu eras o meu amor, tu eras a minha vida mas… antítese infeliz, foste tu que me tiraste a vida que tu próprio me deste. Foste tu que viraste as costas e fechaste, pela última vez, a porta deste mesmo quarto onde me encontro neste preciso momento a olhar para este espelho quebrado. Foste tu que, logo após a histeria do nosso amor jovem, me expulsaste para sempre da tua vida deixando-me envelhecer com nada mais que um mero sopro da tua existência.Agora estou só e nada me incomoda. Com uma calma dolorosa vejo ainda o teu sorriso feliz na manhã seguinte a termos feito amor pela primeira vez. Consigo ver ainda a lágrima triste que derramaste no dia em que o rebento do nosso amor nasceu… e morreu. Consigo visualizar a tua cara tal como se te tivesse visto ontem mas, passaram segundos… horas… dias… semanas… meses… estações… anos… décadas… Tanto, tanto tempo! Mas agora o tempo já não importa. Agora tenho todo o tempo que o meu tempo tem e esse, é todo o tempo do mundo, não do nosso – pois esse terminou cedo – mas do meu mundo.Como está frio nesta altura da minha vida! As minhas mãos roxas estão geladas e doem-me os ossos das pernas. É difícil manter-me de pé… mas isso já não me importa nada. Já não tenho caminhadas ou buscas incessantes para fazer. A neve que cai lá fora funde-se com a brancura dos meus cabelos presos e faz-me pensar que estou a chegar à última estação da minha vida… Sinto que, de alguma forma, o meu sofrimento irá acabar… Sinto que o meu corpo velho irá sucumbir finalmente à adaga que cravaste no meu coração ainda jovem… Muito, muito docemente sinto que vou adormecer eternamente. Em breve, irei ter contigo…em breve abraçar-nos-emos para sempre…
Em breve nada nos poderá separar outra vez… meu amor!... Minha vida!... Meu reflexo do meu próprio reflexo!

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